quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

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Ao contrário de Mateus, Rita era uma rapariga exemplar. Muito calma, pouco falava, mas quando falava dizia palavras sábias de mais para a idade que tinha, pondo até os mais velhos  estupefactos.
Aí lá eles começavam a tricotar que era a cara chapada a mãe: inteligente e linda, de onde se destacava o seu sorriso contagiante, chegando a por a sorrir o Joaquim, o homem mais carrancudo lá da freguesia. Rapidamente se esqueciam dos problemas estando ela por perto. Era um autêntico anjo com os seus cabelos louros e com os seus olhos azuis brilhantes. Olhos estes que saíram ao seu pai.
“Oh Mateus! Que estás a fazer aí deitado no chão?”, apareceu ela a correr e a olhar muito pasmada para o Mateus.
“Ome, tropecei aqui na raiz de uma roca... Quié que aconteceu?”
“O pai já está fulo sem saber por onde andas.”
“Fogo, já vou, já vou!”
Era praticamente de noite quando os dois estavam a chegar a casa. Estava um tempo meio melindroso, com a aparência de que estava para vir mau tempo. Ao longe já se avistava, a partir da varanda da casa, nuvens negras vindas do mar a aproximarem-se para a terra. Júlio, vendo este mau presságio a aproximar-se, decide ir rapidamente colher a roupa que estava a secar na linha pedindo ao Mateus ajuda para tal tarefa. Assim que estavam acabando de colher a última peça de roupa, Júlio sente um pingo grosso a bater-lhe na testa, e a seguir outro, e outro, e outro, e outro, até ao ponto de já estar a chover torrencialmente. Ambos fugiram para o abrigo que se situava ainda um pouco desviado da casa, onde esperava a Rita pelos dois homens.
Entretanto, enquanto ambos esperavam que a chuva amainasse, Mateus olhou para o pai que observava atentamente o céu na esperança de ver sinais de bonança.
“Pai...?”
“Quié que queres?”
“Tens saudades da mãe?”
Júlio, ouvindo esta palavras da boca do filho, pára de fitar o céu e olha para o filho, olhos nos olhos, cara à cara.
“Sinto filho. Sinto muitas...”
Mateus até estranhou esta face do seu pai. Já nem reconhecia este seu lado requintado de calma, de simpatia, de carinho. Todo este momento fez com que remontasse logo aos tempos em que o pai levava toda a família a dar passeios junto ao mar, numa praia onde, com o por do sol, qualquer casal se perdia, porque enquanto o sol se punha fazia cada vez mais frio, justificando o facto de terem que se abraçar, não só para manter o calor dos corpos, mas também para confraternizar o amor entre ambos, ou seja, era como que se fosse o calor que aquecia o ferro, para que este pudesse ser moldado na forma mais perfeita, tendo como fim o amor sólido para toda a vida. 
De repente lembrou-se de um desses passeios. O sol já se estava a pôr e a família já procurava o regresso a casa. De repente, o pai olha para uma das casas, que mais se sobressaia entre as outras, e disse com um tom de afirmação: “Aquela ainda vai ser nossa casa! Vai ser ali que vamos fazer as nossas árvores de Natal. Vai ser ali que os nossos filhos vão crescer! Vai ser ali que vamos ser ainda mais felizes!”
De forma espontânea estes pensamentos foram rompidos pelo aviso do pai de que o tempo já estava a amainar e que iam procurar a casa.

sábado, 18 de dezembro de 2010

I

"Porra!", berrou ele enquanto esfregava intensamente o pé que já estava a borbulhar devido à picada da urtiga. "Ainda nem andei metade daquilo que tenho que andar e já tou assim agarrado ao pé! Valha-me Deus!"
Mateus era um jovem simples, mas sempre com o seu sorriso estampado na sua cara branca e com as bochechas sempre rosadas, fazendo lembrar um daqueles soldadinhos-de-chumbo. Sempre que tinha forma de fugir aos deveres, lá ia mostrar a sua forma atlética no campo de futebol lá da freguesia. Era simpático, mas humilde a cima de tudo. Era muito traquinas, mas sempre obediente ao pai. O pai mandava, ele fazia. 
Andou todos os seus 16 anos descalço, nunca soube o que era sapatos. Vestia, diariamente, apenas uma camisola de flanela, que tinha as pequenas particularidades de ser axadrezada de cores azuis e vermelhas (as suas favoritas) e de ter um cheiro forte a estrume das suas cabras e bodes com que lidava diariamente, só lá no Inverno rigoroso o pai lhe dava um casaco que, como ele dizia, "mais parecia a ser uma saca de serapilheira com fecho", ou seja, ter ou não o ter era a mesma coisa... Não sentia vergonha da forma como andava, apesar de já estar no evoluído século XXI. 
Muitas das vezes passava pela casa da senhora Ermelinda, que fazia uns bolinhos de limão de comer e chorar por mais, onde lá metia dois dedos de conversa com ela. No final, em tom de simpatia, lá ela dizia a ele: "Leva aqui estes bolinhos para ti e para a tua irmã, para cearem logo à noite antes de irem para a cama." No entanto, assim que virava a esquina, safado que era, abria o saco e lá devorava os pequenos bolinhos, enchendo a boca até não poder mais, só para não ter que chegar a casa e ficar sem eles por causa do pai.
"Oh Mateus!! Tá-me parecendo qu'o pau de marmeleiro vai aquecer mais qu'a aguardente de figo que emborquei esta manhã na tasca?!"
"Oh pai, este fardo de palha pesa muito nas minhas costas e já tou com os pés em bolhas por causa das urtigas..."
"Quero lá saber! Eu na tua idade carregava dois desses e ainda ia a correr pa casa, pa depois levar com a queda do sapato d'meu pai!"
Ao contrário de Mateus, seu pai, Júlio, tinha a fama de fazer maratonas pelas tascas da freguesia a pedir fiado sempre por mais um ou dois copinhos de bebida, fosse ela aguardente ou whisky, tinha era de aquecer a cabeça. Tinha a sua cara constantemente avermelhada devido ao álcool e tinha uma estatura média, apesar de ser um pouco mais alto que o filho e não muito mais largo que ele. O problema é que estava sempre a gabar-se junto dos amigos das proezas que tinha feito e que era capaz de fazer só para se vangloriar perante o seu grupo de reunião nas tasquinhas. Porém. tinha uma grande beleza, os seus olhos; os olhos azuis vivos, que chamaram logo a atenção da sua já falecida mulher após um aparatoso acidente de viação. Daí ter vendido tudo o que lhe fazia lembrar a sua queria mulher e refugiar-se na bebida. Para Júlio, a vida já não fazia sentido. Nem mesmo os seus filhos faziam-no encontrar um rumo para a sua vida. Estava simplesmente entregue inexorabilidade do tempo.
Entretanto Mateus já estava de novo de pé, já com o fardo de palha ás costas a correr para junto do seu pai que se encontrava no cima da colina. Passado algum tempo -  isto já iam para as 7h da tarde - a noite já estava fechando sobre o brilhante dia de Verão que fez. Mateus foi dar de comer às galinhas e ao seu rebanho e, entretanto, deu-se de caras com um gato malhado de um amarelo torrado, que o fazia lembrar um dos vestidos que a sua mãe usava pelo domingo aquando ia à missa, e de um preto muito escuro. 
"Vem cá bichano q'eu na te faço mal... vem cá...", enquanto fazia um som com a boca, a fim de acalmar o animal. Este, vendo aquele estranho a aproximar-se de si, foge entre um bardo de mato que lá se encontrava perto. "Paciência que até os animais fogem de mim..." Sim, porque até as cabras, quando ele ia tratar delas, lhe davam cabeçadas, ficando até um dia com uma perna negra por causa de uma cabeçada. 
Vendo que o animal não tinha maneira de voltar para junto dele, levantou-se e fez-se ao caminho de casa. Mas, para seu azar, tropeça numa raiz de roca, que estava fora do alcance da vista dele, acabando por ficar estatelado no meio de chão, parecendo ser um avião prestes a levantar voo da pista. Ficou assim por uns bons 30 minutos, pensando de como o céu era lindo, de como as nuvens se estavam a mover rapidamente, de como o acidente, que levou a alma da sua mãe, se passou numa questão de segundos. Mil e uma coisas surgiram na sua mente jovem e viva. Mas, ao mesmo tempo, não queria pensar em nada, queria apenas puxar o ar fresco e cheiroso das flores que o rodeavam. Olhou para o lado e colheu uma flor de uma erva. Tinha pétalas amarelas. Encostou a flor ao seu nariz e puxou com tanta intensidade que fico com uma das pétalas enfiada numa das narinas que, consequentemente, fez com que desse um espirro ao ponto de assustar as galinhas que estavam empoleiradas nos galhos das árvores. 
"Ficava aqui té o sol nascer outra vez. Q'ria ser o primeiro a ouvir o cantar dos pardais e das galinhas. Sentir o passar da mão da minha mãe pelo cabelo, que me acalmava;que me fazia sentir seguro; que me fazia sentir amado... Porquié qu'as coisas tem d'ser assim? Porquié? É tão injusto ele ter matado a minha mãe e, no entanto, tar a respirar o ar que podia; que devia pertencer à minha mãe! É tão injusto! Mais que nunca duvido que Tu realmente exististes... Tu que dizes ser justo para com todos, mas simplesmente ficas aí no céu à espera das almas que tanto sofreram sobre a tua custódia. Sim...Tu..."

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